rio das almas
Há cerca de vinte anos a questão da representação do espaço e da constituição de um lugar tem sido o eixo estrutural de minha produção artística. Se num primeiro momento o espaço existente entre o céu e a montanha era o foco principal de meus desenhos, gravuras e pinturas com o tempo esse olhar foi se deslocando e transformou o céu em protagonista da cena, tendo a montanha como uma base sólida e robusta para ancorar os movimentos celestes. Essas representações eram construções realizadas quase sempre à distância, uma observação da paisagem a partir de uma relação mais ampla com o entorno, seja ele a cidade do Rio de Janeiro, nas escarpas do país basco ou no meio da Chapada dos Veadeiros.
Nos últimos anos se estabeleceu um novo olhar que se aproximou do chão, dos pequenos e ínfimos detalhes, registrando cada evento com linhas, manchas e pontos. A série projeto para desenhar o chão durou cerca de dois anos e foi concluída quando realizei os mesmos percursos das caminhadas do alto, de dentro de um avião, recorrendo apenas à memória visual. Andar e ser parte da paisagem enquanto me deslocava passou a ser o ponto de interesse nessas novas representações e escolher em seguida o fundo do rio foi um caminho quase óbvio. Durante duas temporadas em Cavalcante, interior de Goiás, o Rio das Almas, que atravessa o município atraiu minha atenção e se tornou cenário de três novas séries de desenhos. A série Rio das Almas, Cavalcante GO que vai além da observação e da representação do real. Neles, a água assume o céu na construção dos reflexos e duplica as coisas e duplicando o mundo, nos envolvendo numa experiência onírica única.
Olhando o chão sob as águas do rio compreendi a própria beleza: um tipo de beleza interior e ativa. A matéria vista através da água iluminada pelo sol transmite uma impressão fugidia onde a imaginação está sempre em perigo, sempre correndo o risco de dissipar-se no próximo movimento das águas. A fragilidade e a delicadeza dessa contemplação me despertam a necessidade de eternizar o momento e busquei materializá-lo com cores e pigmentos acessando apenas a memória daquela sensação, sem recorrer a outros registros fotográficos ou escritos e assim surgiram essas imagens. São sessenta desenhos em pastel seco sobre papel, grande parte deles no formato 50x50cm, divididos em três séries: a primeira, com vinte e cinco desenhos, realizada em 2018, na segunda, águas profundas, são vinte e cinco desenhos realizados em 2019 e a última, distante do rio, com dez desenhos, em 2020.
Lygia Arcuri Eluf